"E em primeiro lugar: deve ser a felicidade um critério? Para mim, só é questão a felicidade própria, acho que a dos outros deve ser sempre um critério. Sempre? Se Beethoven, para compor a sua música, se Dante, para escrever a sua poesia, se Tolstoi, para viver a sua vida, mais bela, mais dramática do que os livros, tiveram de esmagar a felicidade à sua volta, se, como creio, uma coisa se não podia ter feito sem outra, que valeu mais? Devia também ter sido critério para eles a felicidade dos outros? Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra? Nenhum artista, é claro, hesitaria na resposta: a obra nunca se sacrifica. Os artistas, querido Amigo, São uma espécie de lobisomens: obedecem a um fadário, não podem deixar de sacrificar os outros em vez da obra; o que não é, nos melhores, pequeno elemento para que sofram."
Agostinho da Silva, in Sete Cartas a Um Jovem Filósofo
Os artistas são realmente seres singulares e excepcionais. A sua comparação com os restantes seres humanos não é, de forma alguma, passível de ser feita (apesar de na minha opinião, e na de Agostinho da Silva também, todo o Homem poder ser uma fonte de criação e de arte... mas falaremos disso noutra altura). Contudo, não posso deixar de discordar com esta visão sobre a felicidade alheia e a criação. não creio que a felicidade dos outros possa ser um obstáculo à obra de algum criador. No máximo, esta pode fazer com que o criador execute algumas alterações à sua obra. Se for o caso nada é sacrificado, nasce é apenas uma obra diferente, alterada pela humanidade do criador e também pela de quem se atravessou no seu caminho. Deve ser esta obra desvalorizada ou tida como menos rica porque teve em conta a felicidade dos outros? Não, muito pelo contrário, pois teve a capacidade de, face a esta, se transformar e renascer elevando os dois valores: o da obra e o da felicidade humana.
Se o Bob Marley ou o Gabriel, o Pensador, para comporem e viverem a sua música, se o Eça de Queirós, para escrever as suas obras, se o Martin Luther King, para viver a sua vida, tiveram de exaltar a felicidade à sua volta (ou a falta dela), se, como creio, uma coisa se não podia ter feito sem outra, que valeu mais?
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